Lauro António, 2001


Minhas Senhoras e Meus Senhores, muito boa noite.

É com natural satisfação que aqui me encontro hoje a convite da Câmara Municipal de Aveiro, formulado através do seu vereador da Cultura, Jaime Borges, para dizer algumas palavras sobre a obra cinematográfica de Vasco Branco. Ê um convite Que agradeço e muito me honra.

Não sei se é natural que V. Ex.cias achem natural a minha satisfação. Mas por várias razões a é: antes de mais, permita-se-me uma nota pessoal: é sempre bom regressar a Aveiro, terra Que viu nasceu meu Pai, de quem sempre ouvi tecer os maiores elogios às belezas naturais e à simpatia da sua gente. Com ele aprendi a amar Aveiro, ainda antes de conhecer a cidade, como com ele aprendi muito do que de bom eu possa ser hoje. Foi também com Aveiro, através dele, que me formei. Trago Aveiro no coração desde criança, e por isso muito, satisfeito me encontro neste momento em que sei que, através do esforço conjunto da família de meu Pai e da Câmara Municipal de Aveiro, uma boa parte da obra pictórica de Lauro Corado regressa a esta cidade, a fim de figurar numa galeria pessoal, a surgir no futuro Museu da Cidade. É bom saber que as entidades oficiais desta cidade se preocupam em homenagear e não esquecer os seus vultos, aqueles que “através de obras valerosas da lei da morte se vão libertando”, como diria o poeta.

É bom sabê-lo através do que se pensa fazer em relação a Lauro Corado, é bom sabê-lo em função do que está a ser realizado em relação a outro filho ilustre desta terra, Vasco Branco, de quem a Câmara Municipal promove agora a edição em cassete de urna boa parte da sua obra cinematográfica. Outra razão para me sentir naturalmente feliz por estar aqui.

Julgo Que foi no inicio da década de 70, que o Clube dos Galitos organizou o 1 Congresso Nacional de Cinema Amador, cuja presidência foi entregue muito justamente a Vasco Branco. Era eu então um jovem crítico de cinema (escrevia do “Diário de Lisboa”), cheio de sangue na guelra e uma profunda paixão pelo cinema (espero não ter perdido nem uma coisa nem outra), e fui um dos que aceitou o convite para pronunciar uma comunicação Que, julgo, foi nessa altura demolidora para o que era nesse momento o cinema amador em Portugal, que eu acompanhava com interesse e regularidade, tendo sido várias vezes membro de Júris de diferentes Festivais, onde pude ver e avaliar muito do que de bom (Que era pouco) e de mau (que era muito) então se produzia neste campo. Vasco Branco estava incontestavelmente entre os muito poucos Que mereciam encómios, adivinhando-se por detrás de cada filme seu uni homem com uma sensibilidade, uma cultura e uma formação humana muito diferentes da grande maioria que constituía a massa informe (ou disforme?) que fazia cinema “amador” em Portugal (sem saber o que era amor!).

Durante esse 1 Congresso conheci, pois, pessoalmente Vasco Branco, de quem já vira filmes, lera livros, admirara pinturas e uma notável actividade cultural e política em prol da sociedade portuguesa, nessa altura ainda amordaçada por um regime Que perseguia a liberdade de pensamento e tolhia a criatividade. Foi muito bom nesse momento tê-lo a meu lado, pois foi dos primeiros a felicitar-me pela minha comunicação, ainda que obviamente me tentasse amenizar alguns dos meus excessos próprios da idade. Mas nesse dia senti Que de alguma forma falávamos a mesma linguagem, tínhamos interesses convergentes, defendíamos valores que se assemelhavam, lutávamos por causas idênticas.

Uma dessas causas era o cinema. Uma cinema de qualidade, que libertasse o Homem, que o ajudasse a progredir, que fosse fonte de prazer estético e de criatividade (nos artistas que o geravam como nos espectadores que o viam). Um cinema que fosse feito com amor, com inteligência, com respeito, com dignidade, com arrojo, com coragem. Um cinema que o fosse realmente, e não um sub produto de mediocridade e indigência cultural e artística.

Voltei a ver agora grande parte da obra de Vasco Branco reunida nestas quatro cassetes que vão ser lançadas no mercado e a admiração que tinha por este cineasta cresceu, ao contrário do que poderiam ser os meus receios iniciais, devo confessá-lo. O tempo não abafou em nada a centelha do seu génio. Pelo contrário, ampliou-lhe a qualidade. Vasco Branco é o típico cineasta amador. Amador, insisto na palavra, e nunca percebi muito bem porque muitos se empenharam em retirar de circulação esta designação, trocando-a por uma outra que nada tem de especialmente relevante: cineastas não profissionais. Um amador é aquele que ama o que faz, e neste sentido muitos profissionais deveriam gostar de ser amadores. Não o contrário. Vasco Branco é o exemplo do que deve ser um cineasta amador, ou melhor dizendo, é o exemplo do cineasta que é amador da coisa amada. Do cinema.

O que mais me fascina neste cinema que era registado numa câmara de 8 milímetros, de super 8 ou de 16 milímetros, consoante as possibilidades técnicas e económicas de cada um, é o facto de ser um produto manufacturado, verdadeiro artesanato produzido com as mãos, mas sobretudo dirigido pelo coração e a sensibilidade de um artista. O cinema amador tinha muitas limitações, inclusivé de ordem técnica, mas continha igualmente algo de absolutamente precioso: uma liberdade imensa de criação, liberdade de que Vasco Branco dá prova provada ao verem-se hoje em dia os seus filmes, arrumados um pouco arbitrariamente em géneros que por vezes se confundem (Enredo, Documentário, Fantasia e Animação), mas que todos eles confirmam não só a particular apetência do autor pela imagem, corno sobretudo pela expressão de um pensamento e de um sentir através dessa imagem.

Haverá Que notar Que nem toda a obra cinematográfica de Vasco Branco revela a mesma qualidade e importância. Neste aspecto, com algumas excepções, o conjunto de filmes “de enredo” revela-se o de mais frágil valorização. Mas tanto na fantasia e na animação, como no documentarismo, o seu trabalho se mostra de uma modernidade exemplar, se confrontado com a época e com os meios disponíveis. Há influências óbvias mas bem assimiladas e enriquecidas pela personalidade própria. O seu O Espelho da Cidade, Que vem directamente de O Espelho da Holando, do mestre holandês Bert Haanstra, tem no cinema amador o significado e a importância de urna obra prima como Douro, Faina Fluvial, de Manoel de Oliveira, Que é também uma inspiração de Berlim, Sinfonia de Uma Cidade, de Walter Ruttman.

No campo do documentarismo, há, no entanto, muito mais a reter: as belas imagens a preto e branco de Sol, Suor e Sal, com um olhar de apetência neo realista sobre o labor nas salinas, ou Gente Trigueira, com os moliceiros em primeiro plano, onde a cor empresta algum dramatismo poético. O documentarismo de Vasco Branco não se pode, no entanto, observar no seu estado puro, pois se encontra evidentemente minado, contaminado pela “fantasia”.

Será mais documenta! O Espelho da Cidade do Que algumas obras etiquetadas de “fantasia” e Que são Chaos ZN-73, Bosque Encantado, Migração Fantástica ou Tocata e Fuga em Ré Menor de Bach, onde se registam bailados de luzes reflectidas nas águas, raios de sol atravessando a folhagem das árvores, as searas ondulantes, a espuma das ondas esfumando-se nas areias da praia ou a chuva filtrada através do vidro? Em todos eles há a mesma ânsia de atingir a beleza através do jogo das formas, do contraste das luzes, do movimento envolvente do Que nos rodeia. São imagens reais Que tendem à abstração, e é conveniente não esquecer aqui que Vasco Branco é também um artista plástico, um homem atento ao que se fazia no campo da arte, da pintura ou da escultura, por essas décadas.

O cinema de Vasco Branco acompanhou as rupturas figurativas que se verificavam deste a década de 20, com as vanguardas europeias, mas acompanhou também o que se fazia de mais avançado nos anos 50 no campo do cinema, sobretudo do cinema de animação, com referências directas a alguns grandes mestres como o canadiano Norman MacLaren ou Lem Lee, a quem dedica directamente o seu Figuras e Abstracto, uma tentativa de filmar sem câmara, com a película a ser directamente pintada sobre o seu suporte. Mas no campo da animação Vasco Branco experimentou tudo, desde essa obra de estreia, Que permanece de uma tocante ternura e simplicidade, O Bébé e Eu, com um gato Que se anima durante o sono de um irrequieto bébé, onde a imagem real se cruza com a animação, passando pela animação de silhuetas de papel de cor (Circo e Etc., Crime no Casino, Western ou Viagem à Lua), até à animação de figuras de xadrês (em Xadrês), culminando na manipulação de insipientes marionetas (em Máquina por exemplo).

O cinema de amador tinha de ser, quase por definição, obra de curta duração e de um só conceito. Homem de muitas e afectuosas palavras no convívio diário, Vasco Branco foi cineasta de parcas palavras no cinema, o que se compreendia pela dificuldade técnica de criar som síncrono em 8 milímetros. Mas esta desvantagem técnica trouxe alguma virtude aos filmes que tinham de ser essencialmente visuais para serem facilmente perceptíveis pelo público. Vasco Branco nunca se atrapalhou nesse diálogo, mostrando-se imaginativo e audacioso nas suas invenções de comunicação.


Haverá quem diga que o cinema é uma arte eminentemente colectiva e que um individualista nato como Vasco Branco se ressente desse facto. Comecei por dizer que o lado artesanal do cinema de amador me fascinava profundamente num criador como Vasco Branco. Não sei mesmo se não será a imposição do colectivo no cinema que o perde, por vezes, tornando-o mais industria Que arte. Toda a verdadeira arte só pode ser individual, pois, ou é o sincero reflexo de um artista (e vale por isso) ou é argamassa competente de técnicos (e não deixa de ser produto em série, sem marca de registo a autenticar a origem). Todos os grandes cineastas, mesmo à frente de terríveis máquinas de produção, provaram que a arte só pode ser individual. Ou são egoisticamente individuais, subordinando ao seu querer o talento e a arte de cada um dos que trabalham sob a sua orientação, ou não são nada, apenas capatazes de obra alheia sem centelha nem respiração próprias. Vasco Branco é um artífice que burila com carinho cada objecto que lhe sai das mãos, um joalheiro de miniaturas trabalhadas com amor. Amiúde, o talento e a imaginação superam os meios. Não raro se sente que, com outra matéria nas mãos, a obra seria tecnicamente mais bem acabada. Mas nunca seria mais autêntica e mais genuína.

A terminar, uma observação que julgo indispensável não calar. A Importância da obra cinematográfica de Vasco Branco impõe que a sua divulgação não se restrinja à edição destas quatro cassetes em vídeo. O vídeo é um suporte muito vulgarizado, é certo, mas é urgente que se proceda ao restauro das películas, muitas delas deterioradas, e à sua edição em DVD. Só assim se poderá preservar para futuro este pequenino tesouro da nossa cinematografia, porque, ao contrário de outros, julgo que Vasco Branco, apesar de farmacêutico, escritor, pintor e ceramista, e para lá de tudo o mais que já foi e é, tem sobretudo no cinema português um lugar de inestimável relevo. A Câmara Municipal de Aveiro não deveria pois ficar por aqui, mas ir mais longe. Solicitar o apoio do ICAM para a edição em DVD da obra deste cineasta, e rodear o seu lançamento de um aparato crítico essencial, publicando uma pequena monografia e outro material de apoio. Vasco Branco bem o merece e a cultura portuguesa ficará certamente agradecida.

Por mim, muito obrigado a Vasco Branco pelos seus filmes, muito obrigado a V. Ex.cias pela vossa atenção.

Lauro António

Aveiro, 7 de Dezembro de 2001