Ainda que as estrelas sejam de mar

Vasco Afonso Branco

Cada niño es un artista. El problema es cómo seguir siendo un artista una vez que hemos crecido. – Pablo Picasso

Eu acordei para a vida no meio de um rodopio de ideias e fazeres, de obras e prémios incorporados num homem amável, generoso, muito simpático, de humor pronto, sorriso inundado pela laguna e que dava pelo nome de meu pai. Vasco Branco é um artista plural, com homónimos temporários que desapareciam depois de cada obra estar resolvida. Partiam dos mesmos princípios humanistas, partilhavam o mesmo olhar sobre o mundo, emocionavam-se da mesma forma com a beleza, especulavam e debatiam apaixonadamente sobre possibilidade e futuro, porventura almoçavam e jantavam juntos, mas transformavam o mundo cada um à sua maneira. Para mim é fácil vê-los quando fecho os olhos, sempre atarefados, ora com as mãos na máquina de escrever contos, romances, ensaios, ora atrás da máquina de filmar documentários, ficção, animações, ora a pintar uma tela, ora com os dedos no barro. Todos eles começavam em pequenos papéis (lembro-me da parte de trás das guias das encomendas da farmácia, A5, cor-de-rosa, fáceis de dobrar e guardar na carteira) onde a escrita ou o desenho com uma caneta de feltro fina lhes antecipavam contornos possíveis. A partir daí tudo acontecia, tudo era partilhável, tudo era questionável, motivo de conversa animada e a obra nascia.

Foi assim que também conheci o VIC, ainda era miúdo. Era um dos homónimos do meu pai, ligado às artes plásticas, só que assinava VIC. O meu pai apresentou-me o VIC, mas também a tantos amigos que admirava: Abel Salazar, Antoni Clavé, Arcadi Blasco, Artur Fino, Goya, Jeremias Bandarra, Júlio Resende, Miró, Picasso, Querubim Lapa, Velásquez … (seria impossível enumerá-los todos, mas todos se cruzavam nesta casa). Alguns desses amigos estavam presentes, de abraço, outros à curta distância da obra que se fruía e que se conversava. E o VIC deixava, às vezes, que a mão do meu pai revelasse essas conversas. Uma mão que era cheia, pela curiosidade e pelo desenho, pela cor ou pela forma genuína com que era ele a moldar o barro. Uma curiosidade que lhe confessa uma poética experimentalista, sem erro, nem tédio. 

Miró foi um desses amigos com quem o meu pai conversou frequentemente. Estas conversas, quer em pintura, quer em cerâmica, demonstram a proverbial elegância de Vasco Branco que facilitava o diálogo entre os dois, usando, na construção do seu próprio discurso plástico, alguns elementos da linguagem do seu conviva. Ainda que as estrelas sejam de mar, a linha se deixe ao sabor de uma onda, ou de um raio de sol e os olhos estejam sempre disponíveis para serem peixes. 21 de Março de 2017, Vasco Afonso Branco


VIC vertendo Miró para grés 

Rosa Alice Branco

À parte disso, tenho em mim todos os sonhos do mundo – Álvaro de Campos, “Tabacaria”

Além de considerar Miró como um artista de excepção, o meu pai dizia-nos com um ar maravilhado, muito seu, que se tratava de um surrealista de pureza sem igual. Esta paixão podia bem ter-nos levado aqui ao lado, à colecção extraordinária de trabalhos de Joan Miró, na Casa de Serralves. Imagino as caminhadas errantes pelas salas com o seu olhar que olhava sempre pela primeira vez. E volto atrás, às nossas viagens frequentes a Barcelona para desfrutar a Arquitectura e as Artes, palmilhar a Fundação Miró no Parque Montejuïc. O meu pai costumava ilustrar esta pureza da obra do artista comentando-lhe o uso das cores primárias, a escrita automática, o equilíbrio provisório de cada tela. E apontava:  — Podia despenhar-se, vês? Mas não, alguma coisa o sustém assim. Entre o vazio e as formas há uma surpresa que mantém cada coisa no seu lugar, e este lugar é só uma existência, seja da ordem da pintura, ou da escultura. 

A pureza de Miró é também patente na maneira como este funde toda a história da arte nos seus trabalhos, independentemente do suporte. Neste sentido, a pureza de VIC – nas peças de cerâmica que celebram Miró – encontra-se no diálogo aberto com este, deixando fluir o gesto do Cubismo e outras histórias, deixando entrever o universo onírico da cidade salgada, vertido para o grés em cores vibrantes que coexistem com a tessitura de formas surpreendentes. Neste VIC, hoje, aqui, ao encontrar o gesto de Miró, sinto os nossos passos calcorreando Montjuïc nas palavras e no traço fácil do meu pai. Nesta homenagem a Miró, reencontro em VIC o instinto amoroso para a arte como modo temperamental de viver em sonho.