Valter Hugo Mãe
Era o meu pai que dizia que íamos a uma cidade que inteira se punha a nave-gar. Já sabíamos das terras costeiras, de como paravam o mar, mas seguíamos no carro para Aveiro e eu era muito menino, escutando sobretudo o que os meus irmãos perguntavam, como quem ainda se dispunha à fantasia do mundo -2 mais livre credulidade. Chegavam às casas, metidas pelas ruas, as águas. Um bocado de rio ao contrário, era como se explicava a inusitada ria, um mar educado que vinha oferecer o seu sal. Pensei que o mar se fazia de idades :-‘erentes, mais velho este pelas ruas, muito mais do que aquele que ficava na -.,:.tentação das praias, impaciente e até à procura de confronto.
O meu pai dizia que, se houvesse de deixar entrar as ondas, se despegariam completo as casas e ali se faria partida e navegação, e até o nosso carro s-,a embarcação e claro naufrágio. Entre sonho e susto, Aveiro de adornos e cnarmes, não se visitava como um lugar normal. Visitava-se por mirabolância, por encanto, adoçando a boca com ovos moles em óstias alvas, limpas, pare-cidas também com minerais oceânicos.
Quando encontrei Vasco Branco na sua casa do Parque de Santa Joana, -cdeado de livros, quadros e esculturas, filmes e fotografias de uma vida inteira de arte e cultura, não pude parar a impressão de que, um pouco e por maravilha, ondulávamos. Estávamos em navegação mansa nessa cidade encan-tada para a qual a infância me avisara. E o mestre aveirense muito se ade-quava à minha ânsia inesgotável de magia. Que privilégio o de poder conhecer a sua figura tão completa e gentil. E que alegria sincera lhe reconheci por me acolher, mostrando cada objecto e aludindo à sua história, detendo-se nas inúmeras cerâmicas, depois na aventura de conhecer Almada Negreiros ou no olhar belíssimo da esposa. E eu achava que a cidade navegava e éramos longe da realidade. Eu achava que a cidade navegava e que estaria tudo mui-tíssimo bem assim.
Vasco Branco é o grande espírito de Aveiro, aquele que traduziu a cidade mas também aquele que já era a cidade, ostentando por identidade própria e esplendor sua específica poética por todas as linguagens, verdadeiramente como um homem de todos os sentidos. Gosto quando escreve: “Minha estrada fluída e breve, meu céu infinitamente azul, meu grato odor a sal e algas res-sequidas, sou todo sentidos.”. Parece também dizer-nos que vê e pressente tudo porque se faz de tudo, é matéria ubíqua, universal, intui seus absolutos mistérios, é as evidências e elemento único de revelação.
A sua obra inteira é um modo de emitir um lugar até às /77,91:9 1,V;Of1,2Q1,9, 5` agido que sígr\ífica e aquilo que inspira. Tudo quanto fez é líquido, por-ção de viagem, do que ameaça partir para só talvez voltar, usa invariavelmente movimento, desde o cinema ao texto. Mesmo a massa de suas esculturas se deitou à água para erguer numa forma para sempre, mas sua memória haverá de ser eternamente uma certa sede pelo gesto outra vez líquido, forma que a mão buscou, forma que a mão nadou exactamente nessa liquidez. Tudo é “estrada fluída”, a cidade fluída que amamos, como também a nossa sede, atracção naturalíssima pela água, por sermos água, ondularmos a mando do coração pelas veias fora, marés de sangue que nos garantem a vida.
A obra de Vasco Branco é a boca com que a cidade diz. Não se trata de um dis-curso qualquer, serve para se escutar o que um lugar pensa, o que um lugar sabe, o que acontece quando uma voz se faz discurso genuíno de uma multidão. boca de Aveiro. Magnífica boca de Aveiro.