Artur Fino
A indústria do espectáculo — a televisão, o cinema, a rádio e a imprensa escrita — faz um mau uso constante dos meios ‘artísticos em proveito próprio. Mas o artista não pode juntar-se a essa rentável ilusão. Só pode procurar a verdade. E o mesmo devemos fazer nós se quisermos compreender o que ele procura. – RUDOLF ARNHEIM
Além de cidadão exemplar — o cidadão que todos conhecem e respeitam — Vasco Branco é, sem dúvida, uma das mais importantes e prestigiadas figuras das ultímas gerações, l’i&ruras que são, com total fustku e por direito próprio, referências incontornáveis da cultura contemporânea.
Se houvesse que explicar quem é, melhor, o que é Vasco Branco — cineasta distinguido em todos os quadrantes, ceramista consagrado, pintor, escultor e escritor de mérito indiscutível — diríamos que este artista de múltiplas artes se mostra como alguém que não se queda na facilidade, na produção banal, sem outras consequências que não a trivialização das coisas; antes procura — e atinge — numa deambulação espiritual, inquieta e filosófica, o que todos perseguimos, mas quase nunca alcançamos: a essencialidade.
Uma viagem ao interior do seu território intelectual, que é, por excelência, o do domínio artístico, permitir-nos-ia enriquecer esta caracterização; assim, afirmaríamos Vasco Branco como um artista — e, por o ser, um homem sensível aos males do mundo — que, jamais se detendo na contemplação do próprio umbigo, com a simplicidade dos que são efectivamente grandes, a inteligência, a coerência e a segurança de quem não tem qualquer dificuldade em distinguir o supérfluo do essencial, ou em destrinçar o actuante do obsoleto, se destaca como uma figura exemplar da nossa cultura.
Pela obra — quer plástica, quer literária, quer cinematográfica — que desde há longas décadas vem realizando, Vasco Branco propõe-nos permanentemente uma diversa forma de olhar, um renovado modo de observar o universo- que nos envolve, motivando-nos a (re)aprender a arte, a sua fenomenologia, e a contactarmos com as mais recentes propostas e linguagens da pintura, da cerâmica, da escultura, da literatura e do cinema, e através dela, procedermos a uma leitura atenta do mundo; negando assim a aceitação passiva, onde as manifestações estéticas se destinam a servilmente representar ou meramente ilustrar elementos ou partes da natureza, coloca-nos na perspectiva de uma diferente maneira de ver, de agir, de entender, de apreciar e, se necessário, modificar; pois tudo quanto desafie, perceptiva e plasticamente, as nossas capacidades de discernir e organizar, é passível de ser equacionado: quanto aos conceitos, o que se apresenta desde o que podemos chamar de função da arte, até às suas vertentes sociais; do ponto de vista filosófico, estende-se aos aspectos mais profundos da psicologia da arte.
No ambito da produção plástica — e, particularmente, na cerâmica — Vasco Branco denota uma poderosa ligação orgânica à obra que produz, tanto como à matéria que utiliza. Há como que uma relação telúrica, uma organicidade visível em tudo quanto, no plano artístico, executa, o que, obviamente, o releva como um dos artistas que, trazendo-nos o convencimento de que o vínculo existente entre o espírito e a vida não sofreu irremediáveis rupturas, tem contribuido, mais que ninguém, para a tão desejada quanto imprescindível humanização da arte.
Patriarca da modernidade nesta terra, Vasco Branco é um dos mais autênticos e empenhados expoentes dessa modernidade. O ineditismo, a linguagem estética, a qualidade, a honestidade de processos, que justamente se reconhecem nos seus trabalhos vêm, desde sempre, marcando um espaço indelével e singular no panorama artístico do nosso tempo.
Apesar dos porfiados esforços de uma crispada e insignificante minoria de pretensos críticos, que fazem os possíveis por o ignorar, e que, por outro lado, se obstinam em elogiar, imbecil e levianamente, tanto do entulho estético que por aí se vai fazendo, Vasco Branco mantém, imperturbável mas sem resquícios paternalistas, uma atitude de grande tolerância.
Multifacetado — relembramos a sua vasta e expressiva obra nas já referidas áreas do cinema, nas diversas modalidades das artes plásticas e na literatura — ainda hoje dedica, de forma repartida, o melhor do seu tempo à consecução do que, neste âmbito, mantém como objectivos inadiáveis.
Para este criador de eleição, as suas opções estéticas, formais e temáticas, são acompanhadas por uma criatividade incomum; mesmo quando recria temas clássicos, com alguma ironia e mordacidade, diga-se, devolve, nesse acto, a respiração a obras quantas vezes já mortas!
Afirmando uma linha de coerência, também de risco assumido, de racionalidade, mas igualmente de paixão, Vasco Branco é um artista que se emociona, que frui, que reivindica o prazer para tudo quanto faz, em que se empenha, e que, por isso, realiza com sentimento e autenticidade.
Tudo isto, lhe assegura naturalmente, um estatuto que não agrada aos medíocres, ou habilidosos, dos que olham para a tela (ou para a pedra ou para o barro) e a avaliam não em termos de arte mas em função da quantidade de cifrões que se perspectivam, sem qualquer espécie de preocupação quanto à qualidade do que fabricam. Mas, pior que esses pretensos artistas se revelam os críticos, de duvidosa honestidade intelectual, que lhes fazem o elogio pacóvio.
Não sendo, pois — e ainda bem que assim é! — uma figura do seu agrado, é, por muito que lhes doa, a grande presença emblemática das nossas artes plásticas, da nossa literatura, do nosso cinema; é o Mestre aceite e considerado por uma maioria de figuras de outro plano, e uma referência cultural obrigatória.
Sendo por vocação e temperamento um experimentalista — e, por isso, antes se falou de risco — não é fácil, dentro de parâmetros conhecidos ou convencionais, efectuar qualquer colagem da arte que faz a outras formas de expressão, nem reconhecer quais as raízes ou influências, ou em que corrente se enquadra; o que se dá como certo é qüe senhor de uma escrita estética própria, e de uma atitude experimentalista coerente, despreza o receituário, repudia abertamente a ementa tanto como os exercícios de estilo, tão do agrado dos artistas menores.
A sua obra plástica evidencia um Vasco Branco tão apto a reformular o figurativo, recriando-o à sua maneira, como a exprimir-se no mais puro abstraccionismo, dentro do seu estilo inconfundível, utilizando não os processos mais académicos ou um tecnicismo inócuo, mas a técnica justamente adequada às características específicas de cada uma das modalidades tratadas.
Tal como o seu percurso o garante, é um artista inconformado, como o são os artistas de verdade, aqueles que, de forma efectiva e genuína, realizam obra cujas marcas, intensas, são outros tantos legados culturais oferecidos à comunidade, sem demais interesses que não sejam os de a servir.
Avesso a retóricas e a pedantismos, declarado inimigo do conservadorismo e da cedência, empenhado sim em apontar incompetências e, sem imposições, sugerir caminhos, Vasco Branco pertence, de há muito, com inquestionável legitimidade, à história da cultura deste país.
Artur Fino
Novembro, 1997